Thayná Facó é cearense, leitora e jornalista graduada pela Universidade Federal do Ceará. Atualmente, faz especialização em Escrita e Criação na Universidade de Fortaleza.
Pensamos em sangue e podemos quase sentir o fluxo contínuo do tecido correndo pelas veias e artérias, bombeando pelo nosso corpo, carregando os nutrientes e o oxigênio que tanto precisamos. Mas isso é tudo quase. É preciso um arroubo, um corte, um toque bruto para que, de fato, tomemos consciência real de sua existência. A propulsão desse fluxo pelo ar, pela pele, pelo espaço. É a partir desses rompantes sangrentos que se conduz o Sul de Veronica Stigger, escritora gaúcha que desmembra violentamente não apenas histórias mas as formas como são construídas.
Publicado originalmente em 2013, na Argentina, Sul (Editora 34, 2016) tem o sangue como recorrência, desde o trecho que antecede os demais textos do livro. A imagem do nariz que jorra e cujo sangue cria contornos do mapa do Sul na parede. Daí em diante, três narrativas em diferentes formatos e gêneros literários ampliam o sentido da obra como um todo: um conto (2035), uma peça teatral (Mancha) e um longo poema narrativo (O coração dos homens).
Se o romance ganha por pontos e o conto ganha por nocaute, como Julio Cortázar pontuou, os textos breves de Veronica Stigger nos vencem na mutilação. Ganham também no caráter oculto da narrativa, naquilo que não é dito mas que sugere, característica essencial para um bom conto. A proposta de Ricardo Piglia é que um conto sempre conta duas histórias e cabe ao bom escritor trabalhar a tensão entre ambas. E as histórias de Stigger geralmente partem desse corte abrupto, ora evidenciando o que parece banal, ora camuflando o essencial.
Em 2035, texto que abre o livro e que tem como ponto de partida a Guerra dos Farrapos, os escombros de uma cidade ambientam a narrativa distópica, em que a população se esconde nas próprias casas. Acompanhamos o aniversário de dez anos de Constância, levada por oficiais do governo para as “grandes comemorações” da data. Uma espécie de ritual sangrento e espetacularizado se sucede e ecoa as violências de um passado-presente brasileiro. O caráter arbitrário da situação e a violência com que esses representantes do Estado atuam remetem ainda a um estilo kafkiano, provocando o leitor e colocando em questão não somente o que sabemos sobre a história, mas também o controle (ou a ilusão de controle) sobre nossa própria existência em sociedade.
A sensação de estranhamento segue latente na peça Mancha, na qual duas personagens com o mesmo nome debatem a existência de manchas de sangue espalhadas pelo apartamento pouco mobiliado. O teatro do absurdo é salientado quando as aproximações com o mistério são interrompidas por desculpas ou assuntos supérfluos.
Já em O coração dos homens, Stigger narra, em versos, episódios confessionais de sua infância a partir da primeira menstruação e outros absurdos cotidianos. Essas memórias, porém, confundem fato e ficção. O quanto podemos acreditar nos episódios? Uma verdade biográfica teria mais valor (literário ou confessional) do que uma memória forjada?
A edição brasileira de Sul conta com uma surpresa: o texto A verdade sobre o coração dos homens. A verdade sobre aquilo que já é proposto como verdade. Parece ser esse acordo criado entre autor e leitor que Veronica Stigger busca romper, o questionamento dessa busca pelo real, a ilusão de que apenas isso legitima uma obra artística. E para a descoberta da tal verdade, é preciso romper também o próprio livro, em um gesto que beira o performático. Um ritual artístico do qual, assim como acontece com o objeto, não é possível voltar atrás.
Experimentar as formas literárias e borrar os limites entre elas é o movimento que Stigger realiza com suas narrativas. Através da provocação com a linguagem, a autora nos convida para pensar o contemporâneo, as transgressões cotidianas, as fronteiras entre a realidade e a ficção, o cômico e o trágico, o puro e o impuro. E isso diz muito sobre a própria literatura – seu fluxo contínuo de rompimento das normas e abertura de possibilidades.
Fotografia: Trem do Corcovado – Augusto Malta/Acervo Instituto Moreira Salles.